A China ainda voa
20/04/2013 10:24Se o comércio entre o Brasil e a China mantiver o ritmo dos últimos dez anos, o total de exportações e importações entre os dois países deverá chegar a US$ 300 bilhões em 2015 – quase quatro vezes mais do que os US$ 77 bilhões registrados em 2011. Em função da crise mundial, pode-se deduzir que isso não ocorrerá mais nesse prazo. Mas, sem dúvida, o volume será atingido nos anos seguintes. O comércio entre Brasil e China continuará crescendo e resultará em impactos enormes sobre as empresas brasileiras, sejam elas voltadas para o mercado interno ou externo. Impactos que serão ainda maiores se agregarmos a eles os investimentos realizados por empresas chinesas no Brasil – em montadoras de carros, caminhões e máquinas pesadas, obras de infraestrutura de transportes, petróleo, agroindústrias etc. Todos os dias, desembarcam nos aeroportos internacionais brasileiros dezenas de empresários, executivos de grandes empresas e integrantes de governos municipais e provinciais da China interessados em nos vender de tudo, de alho e feijão preto a computadores, retroescavadeiras, máquinas agrícolas e guindastes de contêineres. Eles falam inglês, espanhol e até português. E, além de vender o que podem, querem comprar de tudo – de terras agrícolas a turmalinas. Buscam quem queira investir na China e garimpam oportunidades de investimento no Brasil. Participam com estandes nas feiras de negócios em São Paulo, visitam governos e empresas, reúnem-se com seus distribuidores e clientes – e ainda encontram tempo para visitar as Cataratas do Iguaçu. Só no ano passado, as empresas chinesas teriam investido US$ 60 bilhões no exterior. O poderio é alto. Hoje, elas ocupam 73 posições no ranking das 500 maiores companhias do mundo, de acordo com a edição 2012 da revista Fortune. Somados, os países da Ásia têm 168 companhias na lista. Os Estados Unidos têm 132, o Japão apresenta 68 e Alemanha e França emplacam 32 cada um. Mais atrás, a Coreia do Sul aparece com 13 empresas, a Índia e o Brasil, com oito, a Rússia com sete e Taiwan, com seis. Comparar a situação atual com a dos primeiros chineses que chegaram ao Brasil para plantar chá em São Paulo, há exatos 200 anos, ou com a dos trabalhadores que foram levados na mesma época aos Estados Unidos para construir ferrovias, dá bem as dimensões e a qualidade das transformações ocorridas na China, nos últimos 30 anos. Apesar disso, por incrível que pareça, não há de nossa parte qualquer sinal de uma reação articulada que vá além da retórica da mídia contra as importações da China – a respeito da desindustrialização que já estaria ocorrendo no Brasil. Pior ainda é a prática contraditória dos empresários e entidades das indústrias (CNI e federações), que todos os anos levam grandes comitivas à Feira de Cantão e a outras feiras na China, onde compram produtos chineses e deixam seus próprios líderes sem discurso. Recentemente, o governo Dilma anunciou que a China é uma prioridade. Como explicar, então, o fato de que a Embratur ainda não incluiu o país nas suas ações de divulgação do Brasil? Ou que a nossa embaixada na China não tenha uma estrutura proporcional à importância desse país na economia mundial e a sua condição de maior parceira comercial do Brasil? Faz algum sentido haver uma única pessoa na embaixada encarregada de cuidar de assuntos relacionados ao agronegócio, setor em que a China desponta como a maior compradora mundial, com potencial para triplicar as importações até 2020? Ainda que não tenhamos nos dado conta disso, o Brasil é o parceiro estratégico mais importante do mundo para a China. Porque é o seu maior e melhor fornecedor de alimentos e matérias-primas agrícolas, minérios e energia, tanto em termos efetivos quanto potenciais. O Brasil está entre os cinco maiores em área e população, caminha para ter a quinta maior economia e é um dos maiores mercados do mundo em vários setores. Não temos nenhum contencioso histórico/político com a China, nem tampouco competimos comercialmente no mesmo patamar – como fazem Estados Unidos, Alemanha, Japão, França, Inglaterra e Rússia. No caso dos Estados Unidos, aliás, ao que tudo indica haverá um agravamento das tensões com a China caso o candidato do Partido Republicano, Mitt Romney, ganhe as eleições em novembro próximo. Pudera: ele sempre se manifesta de maneira agressiva em relação à China e promete barrar as “importações chinesas” e coisas do gênero. Obviamente, seus assessores já disseram que as tais importações, em sua maioria, são de empresas norte-americanas que produzem na China e que mais de 60% do total de exportações chinesas são de indústrias estrangeiras lá instaladas. Ainda assim, Mr. Romney faz questão de jogar para a plateia, que anseia por uma solução para os problemas econômicos dos Estados Unidos o mais rápido possível. Hoje, 20% da população mundial é da China. Entretanto, o país só dispõe de 6% da água mundial. Cerca de 400 cidades chinesas (dois terços do total) sofrem com racionamento de água e 110 convivem com severa escassez, segundo o Anuário 2010 do Ministério de Recursos Hídricos do país. Há, no país, somente 2,1 mil metros cúbicos de água per capita – um terço da média mundial. Quase metade do território chinês tem clima árido ou semiárido, o que dá uma noção das dificuldades históricas que a população chinesa enfrenta para se alimentar. Política alimentar A questão alimentar na China sempre teve um componente político explosivo. Com o aumento do poder aquisitivo da população nos últimos 20 anos, ocorreram mudanças importantes no padrão e na quantidade de consumo de alimentos. Segundo a instituição nacional de estatísticas do governo chinês, o consumo urbano per capita de grãos, que era de 130 quilos em 1990, caiu para apenas 78 quilos em 2009. Em contrapartida, no mesmo período o consumo de frango saltou de 3,4 para 9,7 quilos e o de leite, de 4,6 para 26,4 quilos. Já o consumo de carnes de porco, ovelha e bovinos se manteve em 18,5 quilos per capita. Ao mesmo tempo em que passaram a comer mais proteínas vegetais e animais, os chineses foram reduzindo sua área agrícola. Perderam terras cultivadas para ocupações urbanas e romperam a “linha vermelha” de segurança da área agricultável, de 125 milhões de hectares – em breve, estarão com menos de 100 milhões de hectares. campones-chines350Essas alterações se deram às custas da soberania e segurança alimentares do país, através de compras externas cada vez maiores de soja e outros grãos, além de lácteos, frutas e todos os tipos de carnes. Quando ocorreu a crise alimentar mundial de 2007/08, houve uma intensa agitação popular em dezenas de países, devido ao aumento dos preços da comida, que responde por 60% a 70% do orçamento das famílias pobres na Ásia e na África. Os fenômenos El Niño e La Niña costumam atingir várias partes do mundo de maneiras diferentes – causando, por exemplo, secas no nordeste brasileiro e inundações em Myanmar, no sul da Ásia. Quando bate uma seca no hemisfério norte, como essa que está reduzindo drasticamente a produção de milho dos Estados Unidos; ou quando surgem inundações como as que volta e meia ocorrem na Ásia, diminuindo a produção de arroz local, a questão central deixa de ser os preços altos e passa a ser, também, a falta de alimentos no mercado mundial. Por isso, os chineses estão investindo em agricultura na Argentina, no Brasil e em vários países africanos. Querem escapar não só da inflação de alimentos, mas também da falta deles. Acima de tudo, querem reduzir o risco da dependência de um único e grande fornecedor de alimentos. Quem consome quase 600 milhões de toneladas de cereais por ano, tem de pensar na sua segurança alimentar globalmente e considerar a ocorrência de desastres climáticos e de pragas e doenças agrícolas nos principais produtores e exportadores de alimentos. Essa lógica vale também para o petróleo. A produção chinesa, de 4 milhões de barris por dia, atende a menos da metade do seu consumo atual, que é de 9 milhões de barris por dia. A China vive uma situação de desespero energético há muitos anos. Mantido o ritmo de consumo atual, as suas reservas de carvão acabarão em 40 anos. E as importações de petróleo sempre foram maiores do que a produção, o que mantém o país vulnerável e impede que ele diminua sua dependência em relação ao carvão, responsável por quase 70% de sua matriz energética. Infelizmente, nem todo o carvão do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina dá conta de atender um ano de consumo chinês. Apesar disso, o Brasil é estratégico em energia por seu potencial tanto da produção adicional de petróleo do pré-sal quanto de etanol da cana-de-açúcar e biodiesel, que são ambos renováveis – e nos quais temos vantagens comparativas. A bioenergia, aliás, é uma alternativa mais interessante para a China do que comprar carvão dos Estados Unidos e da Rússia, os únicos países que possuem o insumo em quantidade suficiente para mais de um século de consumo chinês. A bioenergia também é mais interessante para a China do que depender do fornecimento de petróleo da Arábia Saudita, Líbia, Iraque, Cazaquistão e Rússia. Velocidade de cruzeiro Dona de uma frota com cerca de 80 milhões de veículos – que poderá crescer para 120 milhões até 2015 –, a China corre contra o tempo para obter a autossuficiência em combustíveis, investindo muito na produção própria e no refino de petróleo e gás. No país, os esforços se concentram na região autônoma de Xinjiang, no oeste. No exterior, espalham-se por diversos países, inclusive o Brasil – onde a China se tornou uma grande investidora dos campos do pré-sal. Para continuar se expandindo à modesta taxa de 8% ao ano, a segunda maior economia do mundo é obrigada a investir o tempo todo em energia. Por isso, em 2010, ela atingiu 22% da capacidade mundial de geração de energia eólica do planeta, ultrapassando de uma só vez os Estados Unidos, a Alemanha e a Espanha. Não só isso: a China já é, também, o maior fabricante mundial de painéis fotovoltaicos. Chega a ser engraçada a discussão sobre “o pouso” da China, se será suave ou brusco. Ora, em tempos de crescimento próximo de zero nas maiores economias mundiais, é uma grande piada dizer que um país cujo crescimento é de 8% ao ano está pousando! O próprio FMI, em sua estimativa para 2012/13, divulgada em julho, apresenta um quadro de crescimento (%) das maiores economias mundiais (veja os detalhes abaixo). A China é, disparado, o país com maiores taxas de expansão. A insistência de especialistas e jornalistas em debater o “pouso” dá a impressão de que eles querem incutir uma ideia: a de que o “pouso” acabará ocorrendo mais cedo ou mais tarde, quase como se ele fosse desejável. Poucos se dão conta da contradição que isso representa. Mesmo que o crescimento chinês caia de 9% para 7,5%, o PIB da China passará dos US$ 7,2 trilhões em 2011 para US$ 7,7 trilhões em 2012 – nada mau nesses tempos de economias destroçadas no antigo Primeiro Mundo. O que essas pessoas não se dão conta é que, na China, os impactos sociais e políticos de uma retração significativa seriam de tal magnitude que estão simplesmente fora de cogitação. Como têm o comando da economia, eles farão o que for preciso para manter a velocidade de cruzeiro – ainda que ela seja menor. Enquanto isso, continuarão a realizar ajustes e correções. Um exemplo é a construção dos trens de alta velocidade. A malha prevista na China é de 25 mil quilômetros. Desse total, 8 mil já estão concluídos. Os chineses recuaram na velocidade de implementação, mas não na decisão de continuar investindo em mais ferrovias, até atingirem a meta de 100 mil quilômetros em todo o país. Para isso, o investimento no setor em 2012 deve se manter no mesmo nível de 2011: US$ 73 bilhões. No Brasil, os governos estaduais que quiserem estabelecer negócios com a China até o início de 2014 têm pouco tempo para se mexer – basicamente, o último trimestre do ano e 2013. Empresas não possuem as limitações legais e políticas de governos, mas é importante se organizarem para realizar comitivas conjuntas, porque elas são mais bem-sucedidas nos contatos empresariais e governamentais na China. Lá a política é que manda, inclusive nos negócios. Desconsiderar essa característica fundamental é uma das razões de fracassos corporativos importantes do Brasil nos últimos anos. *Milton Pomar é empresário e editor da revista em chinês Negócios com o Brasil
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